O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina – Parecer CFM nº 4/2020

Alan Martinez Kozyreff

Dentre os debates mais acalorados que existem no mundo, certamente um dos mais presentes, é sobre a viabilidade ou não da utilização do princípio ativo cloroquina e hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas à azitromicina (antibiótico).


       Não se pretende neste texto um debate acerca da sua adoção no tratamento ou mesmo o debate sobre os estudos que comprovariam, ou não, a sua efetividade para pacientes portadores de COVID-19. A intenção é trazer a atual visão do Conselho Federal de Medicina (CFM), que foi exposta em 16/04/2020, por meio da Consulta CFM nº 8/2020 Parecer CFM nº 4/2020.


       O CFM é uma autarquia, com atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica. A entidade possui atribuições de realizar o registro profissional do médico e a aplicação de sanções previstas no Código de Ética Médica e possui funções que atuam em prol da saúde da população e dos interesses da classe médica.


       A referida autarquia tem sede em Brasília e jurisdição em todo o território nacional, conforme a Lei nº 3.268/57, de 30.9.57, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19.7.58, a Lei n° 11.000, de 15.12.04 e o Decreto n° 6.821, de 14.4.09, possui personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira.


       No parecer do CFM é reforçada a estratégia de prevenção da infecção pela não exposição de contato ao vírus e, neste sentido, é a recomendação básica de higienização frequente das mãos, evitar tocar os olhos, o nariz e a boca com as mãos não limpas, evitar o contato próximo com as pessoas e cobrir a boca e o nariz com o antebraço ao tossir ou espirrar.


       Faz também parte da prevenção o isolamento social, o que neste momento, do ponto de vista médico, a única medida eficaz para impedir a disseminação rápida do vírus e uma forma de se evitar a sobrecarga do sistema de saúde. Também se faz necessária a busca por atendimento médico imediatamente quando houver febre, tosse e dificuldade de respirar.


       Em período de isolamento, menos pessoas são contaminadas e haveria tempo para que possa haver a adequação das unidades de saúde, treinamento de equipes e ampliação da infraestrutura. O CFM deixa claro que o isolamento social não é medida que se possa durar por muito tempo, em razão de fatores de estabilização financeira e da saúde mental dos cidadãos.


     Também e uma forma de prevenção da transmissão a necessidade de reconhecimento precoce de novos casos, o que deve ocorrer com a realização de testes, pois os casos não detectados e assintomáticos são os maiores responsáveis pela elevada taxa de transmissão.


       Quanto à terapia farmacológica, o texto reafirma que “não existem evidências robustas de alta qualidade que possibilitem a indicação de uma terapia farmacológica específica”, porém desde 2019 vários medicamentos vêm sendo testados e os resultados são veiculados frequentemente.


       No entanto até o momento nenhum dos princípios ativos foram aprovados em ensaios  clínicos, com desenho cientificamente adequado e dessa forma não podem ser recomendados com segurança. No parecer é trazido ainda que em recente pesquisa sobre o tratamento para conter a epidemia de infecção pelo vírus ebola, muitos medicamentos que demonstraram efeito em estudos de laboratório não foram eficazes ou foram prejudiciais aos pacientes quando passaram para utilização clínica.


       Dessa forma, é comum a impossibilidade de determinar se um medicamento ainda não testado terá maior benefício ou maior prejuízo se não houver um grupo controle.


     E é nesse estágio que se encontram a cloroquina e a hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a antibióticos, que têm sido muito utilizados para o tratamento da COVID-19, “considerando suas ações anti-inflamatórias e contra outros agentes infecciosos, seu baixo custo e o perfil de efeitos colaterais ser bem conhecido”.


       No entanto, o texto expõe que até o momento não existem estudos clínicos de boa qualidade que comprovem sua eficácia em pacientes com COVID-19, mas é ressalvado que esta situação pode mudar rapidamente considerando as pesquisas que são feitas até o momento.


      A título de exemplo, a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, em 11 de abril, recomendou cloroquina e hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a azitromicina, em pacientes internados sob protocolos clínicos de pesquisa.


A Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) alerto quanto à segurança da cloroquina e hidroxicloroquina, para os seguintes aspectos:


Por serem princípios ativos utilizados há muito tempo o seu perfil de segurança é conhecido. A classe dos antimaláricos são considerados imunomoduladoras e não imunossupressoras;

As reações adversas mais comuns são relacionadas ao trato gastrointestinal como desconforto abdominal, náuseas, vômitos e diarreia, porém também podem ocorrer toxicidade ocular, cardíaca, neurológica e cutânea;

Pacientes portadores de psoríase, porfiria e etilismo podem ser mais suscetíveis a eventos adversos cutâneos, geralmente sem gravidade;

Em casos raros, pode ocorrer hemólise em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase

      Expondo esses elementos, o CFM expôs que o uso em pacientes com sintomas leves, no início do quadro clínico, com confirmação de COVID-19, se dá a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente.


       No entanto, o médico é obrigado a relatar ao paciente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso desses princípios ativos para o tratamento da doença, explicando os possíveis efeitos colaterais, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso. A menção aos familiares se dá em razão que, em muitas ocasiões pode não ser possível ter a declaração de vontade do próprio paciente por limitações físicas ou legais.


       Tal documento deve ser o mais claro e detalhado possível, em linguagem fácil de ser entendida pelo paciente ou família, deixando-o livre para fazer sua opção. No mesmo sentido, deve ser no caso de pacientes com sintomas importantes, mas ainda sem necessidade de cuidados intensivos, com ou sem necessidade de internação.


       Em caso de pacientes críticos, que estão recebendo cuidados intensivos, incluindo ventilação mecânica, o uso deve ser considerado condolente, compassivo, pois seria “difícil imaginar que em pacientes com lesão pulmonar grave estabelecida, com resposta inflamatória   sistêmica e outras insuficiências orgânicas, a cloroquina ou hidroxicloroquina possam ter um efeito clinicamente importante”.


      O CFM reforça que o princípio norteador do tratamento é o da autonomia do médico e a valorização da relação médico-paciente. Esta deve ser próxima com o objetivo de oferecer ao paciente o melhor tratamento médico disponível no momento.


      Também é exposto que, diante da situação excepcional apresentada e durante o período declarado da pandemia, o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina não cometerá infração ética, desde que esteja nos termos acima expostos.


       Ao final do texto, é reforçado ainda que as considerações expostas são um retrato do momento, mas que podem ser modificadas a qualquer tempo pelo CFM com base em novos resultados das pesquisas que forem divulgados na literatura.

Alan Martinez Kozyreff é advogado, professor universitário, doutorando em Ciências Farmacêuticas, mestre em Direito da Saúde, especialista em Direito e Processo do Trabalho, Direito Previdenciário.

Publicações e artigos

Por alankozyreff 25 jan., 2023
A bioética medicinal pauta-se por quatro pilares: veracidade, privacidade, confidencialidade e fidelidade, de modo a preservar não só os direitos inerentes à personalidade, senão também a própria relação de confiança essencial aos tratamentos. O interesse científico não pode se sobrepor aos direitos humanos dos pacientes, devendo ser compatibilizados. No caso, trata-se de violação da confidencialidade dos dados médicos. Em observância aos ditames do Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina, bem como do Conselho Nacionalde Saúde e da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, não resta dúvida, sobre o modo como se procedem as publicações em geral, e as científicas em particular. É do autor a responsabilidade pelo material submetido, sendo descabida a restrição da condenação unicamente à editora. Tais casos não se confundem, por exemplo, com a atividade jornalística, em que a revista é dona do processo editorial e pode intervir com assertividade não só no fluxo como no texto da publicação, na medida em que os profissionais de imprensa estão funcionalmente submetidos aos ditames da empresa. É certo que os editores deveriam ter rejeitado a publicação naqueles termos, com a exibição da face e torso desfigurados da paciente, quiçá concedendo aos médicos a possibilidade de submeter novamente o texto e as imagens; a imposição de medidas mitigadoras da exposição certamente era também responsabilidade dos editores. Contudo, isso não isenta os autores da responsabilidade primária pelo registro (também a captação não foi autorizada, nem mesmo de forma subsequente à recuperação da vítima) e sua submissão à publicação científica. Nesse campo específico (pesquisa e divulgação científica), são os autores os responsáveis pelo texto e seus acessórios. Enquadram-se, assim, os médicos-autores do artigo no conceito de agente do ato ilícito, nos termos do arts. 159 e 1.518 do Código Civil/1916, vigente à época.  Fonte: Informativo Edição Especial nº 8, 17 de janeiro de 2023. Processo sob segredo de justiça, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 16/8/2022, DJe 31/8/2022
28 dez., 2022
A nova lei da telemedician e da telessáude.
20 dez., 2022
A partir de 16 de janeiro do ano que vem, as empresas terão de inserir no eSocial (sistema de registro de informações dos trabalhadores brasileiros) dados de praticamente todas as condenações definitivas na Justiça do Trabalho. Também será obrigatório informar acordos firmados com ex-empregados. Segundo as regras do manual da nova versão do eSocial (Versão S-1.1), as empresas deverão registrar casos — ações e acordos celebrados nas Comissões de Conciliação Prévia (CCP) e nos Núcleos Intersindicais (Ninter) — concluídos a partir de 1º de janeiro de 2023. As empresas também terão de informar dados dos processos em que foram condenadas de forma solidária ou subsidiária. Também serão exigidas informações sobre o período em que o funcionário trabalhou na empresa, remuneração mensal, pedidos do processo e o que diz a condenação, além da base de cálculo do FGTS e da contribuição previdenciária. O prazo para que as empresas apresentem essas informações termina no 15º dia do mês subsequente à decisão ou ao acordo homologado. Em nota enviada ao jornal Valor Econômico, o Ministério do Trabalho afirmou que "a implantação beneficiará os empregadores, reduzindo o tempo despendido na declaração das informações de processos judiciais trabalhistas. Vai evitar, por exemplo, que o empregador reabra e reprocesse as folhas de pagamento relativas a várias competências apenas para incluir diferenças salariais de um trabalhador". A Receita Federal, por sua vez, diz que a novidade vai aumentar a segurança de todo o processo e melhorar a qualidade das informações prestadas. Fonte: Conjur
Por alankozyreff 04 set., 2022
O avanço tecnológico tem proporcionado à humanidade um grande número de benefícios, dos mais variados aspectos. Os cuidados médicos estão evoluindo cada vez mais com o aprimoramento científico das pesquisas e isso é possível notar tanto pela evolução dos equipamentos médicos quanto pela qualidade dos novos medicamentos, tratamentos e dispositivos médicos colocados à disposição dos pacientes. A telemedicina ainda enfrenta algumas barreiras no território nacional, que até mesmo foram expostas no artigo publicado neste Megajurídico em https://www.megajuridico.com/desafios-eticos-e-legais-da-telemedicina/, e ainda possuem dois projetos de lei que visam a sua regulamentação (PL 1998 de 2020 e o PL 4398 de 2021). Para dar mais um passo no aperfeiçoamento do tema, e visando a maior segurança do médico e do paciente, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução nº 2.314, de 20 de abril de 2022, que define e regulamenta a telemedicina como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação. A telemedicina como podemos verificar do seu próprio termo é a medicina realizada à distância. Da expressão “tele” advém a ideia de distância, ou seja, é a prática da medicina à distância. Como exposto no art. 1º da Resolução 2.314/2022, a telemedicina necessariamente ocorre com a mediação de Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs) e ela pode ocorrer tanto de forma on-line ou off-line. O art. 5º da resolução é disposto que ela pode ser exercida nas seguintes modalidades: teleconsulta, teleinterconsulta, telediagnóstico, telecirurgia, telemonitoramento ou televigilância, teletriagem e teleconsultoria. Em qualquer modalidade que ela seja adotada, devem ser observados os padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial, inclusive em relação à contraprestação financeira pelo serviço prestado (art. 16). Neste aspecto, o médico deve ajustar previamente com o paciente e as prestadoras de saúde o valor do atendimento prestado, tal qual no atendimento presencial (parágrafo único do art. 16). A resolução neste aspecto traz a ideia de uma atuação semelhante ao que ocorre no ambiente presencial. A autonomia do médico em usar ou não a telemedicina, deve respeitar a beneficência e a não maleficência do paciente, princípios bioéticos previstos no art. 4º da CLT e o profissional deve indicar o atendimento presencial sempre que entender necessário. O art. 15 regulamenta que o paciente, ou seu representante legal, deve autorizar o atendimento por telemedicina e a transmissão das suas imagens e dados por meio de (termo de concordância e autorização) consentimento, livre e esclarecido, enviado por meios eletrônicos ou de gravação de leitura do texto com a concordância, devendo fazer parte do SRES do paciente. É disposto ainda que em todo atendimento por telemedicina deve ser assegurado o consentimento explícito, no qual o paciente, ou seu representante legal, deve estar consciente de que suas informações pessoais podem ser compartilhadas e sobre o seu direito de negar permissão para isso, salvo em emergência médica. A proteção dos dados do paciente é uma grande preocupação da telemedicina e o art. 3º da referida resolução dispõe que eles devem ser preservados, seja na guarda, no manuseio, na integridade, na veracidade, na confidencialidade, na privacidade, na irrefutabilidade e na garantia do sigilo profissional das informações, de acordo com a lei e com as normas regulamentadas pelo CFM. O atendimento médico deve necessariamente ser registrado no Sistema de Registro Eletrônico de Saúde (SRES) do paciente, que deve possibilitar a captura, o armazenamento, a apresentação, a transmissão e a impressão da informação digital e identificada em saúde e atender integralmente aos requisitos do Nível de Garantia de Segurança 2 (NGS2), no padrão da infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) ou outro padrão legalmente aceito. Esses dados devem ser preservados pelo médico responsável pelo atendimento em consultório próprio ou do diretor/responsável técnico, no caso de interveniência de empresa e/ou instituição. Caso haja terceirização do arquivamento desses documentos virtuais, a responsabilidade deve ser, contratualmente, compartilhada entre o médico e a empresa contratada. O direito do paciente em ter acesso ao seu prontuário é reforçado e o §6º do art. 3º dispõe que ele, ou seu representante legal, podem receber tanto o arquivo em mídia digital, ou impresso. A Lei Geral de Proteção de Dados, por óbvio, é mencionada na resolução de modo que os dados devem ser preservados, devendo obedecer às suas disposições quanto aos dados pessoais e clínicos. O §8º do art. 3º da CLT dispõe que o médico, ao utilizar plataformas institucionais (onde ele esteja atuando), deve dar acesso aos dados do paciente, sendo respeitado o período de preservação das informações. Com relação às pessoas jurídicas, que prestarem serviços de telemedicina, e as plataformas de comunicação e arquivamento de dados, devem ter sede estabelecida em território brasileiro e estarem inscritas no Conselho Regional de Medicina do Estado onde estão sediadas, com a respectiva responsabilidade técnica de médico regularmente inscrito no mesmo Conselho, conforme disposto no art. 16 da Resolução nº 2.314. Com relação à inscrição no Conselho Regional de Medicina, o médico deve ser devidamente inscrito no de sua jurisdição e informar a entidade a sua opção de uso de telemedicina (art. 17, 1º). A apuração de eventual infração ética a esta resolução será feita pelo CRM de jurisdição do paciente e julgada no CRM de jurisdição do médico responsável (art. 17 §2º). Com relação à vigilância, fiscalização e avaliação das atividades de telemedicina, os Conselhos Regionais de Medicina deverão estabelecer vigilância, fiscalização e avaliação quanto à qualidade da atenção, relação médico-paciente e preservação do sigilo profissional. Teleconsulta Regulamenta o art. 6º da Resolução nº 2.314 de 2022 que teleconsulta é a consulta médica não presencial, mediada por TDICs, com médico e paciente localizados em diferentes espaços. O atendimento presencial é ainda o chamado padrão ouro de referência e a telemedicina deve vir para somente complementar, mas sempre deve respeitar a autonomia do médico. No uso da telemedicina o médico deverá informar ao paciente sobre as limitações inerentes ao uso da teleconsulta, pela impossibilidade de realização de exame físico completo, podendo o médico solicitar a presença do paciente para finalizá-la (§4º). Tanto o paciente quanto o médico possuem o direito de optar pela interrupção do atendimento a distância, ou pela consulta presencial, sendo respeitado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pré-estabelecido entre o médico e o paciente (§5º). Quanto à primeira consulta por telemedicina, ela pode ocorrer desde que atenda às condições físicas e técnicas dispostas na resolução, com obediência das boas práticas médicas, devendo dar seguimento ao acompanhamento com consulta médica presencial. No entanto, em casos de atendimentos de doenças crônicas ou doenças que requeiram acompanhamento por longo tempo, deve ser realizada consulta presencial com o médico assistente do paciente, em intervalos não superiores a 180 dias (§2º). Teleinterconsulta Pela resolução, a teleinterconsulta é a troca de informações e opiniões entre médicos, com auxílio de TDICs, com ou sem a presença do paciente, para auxílio diagnóstico ou terapêutico, clínico ou cirúrgico (art. 7º). A responsabilidade pelo acompanhamento presencial é do médico assistente responsável e a responsabilidade dos demais médicos envolvidos deve ocorrer somente por seus atos. Telediagnóstico Outra definição trazida pela resolução é o telediagnóstico, que é o ato médico a distância, geográfica e/ou temporal, com a transmissão de gráficos, imagens e dados para emissão de laudo ou parecer por médico com registro de qualificação de especialista (RQE) na área relacionada ao procedimento, em atenção à solicitação do médico assistente (art. 8º). Com o telediagnóstico ocorre a emissão de laudo ou avaliação de exames através de dados de imagens e gráficos enviados pela internet. É a possibilidade de uso de tecnologia para fornecer informação e atenção médica a pacientes e outros profissionais de saúde situados em locais distantes. A imposição da resolução é, no entanto, que os serviços onde os exames estão sendo realizados devem contar com um responsável técnico médico. Telecirurgia A telecirurgia é a realização de procedimento cirúrgico a distância, com utilização de equipamento robótico e mediada por tecnologias interativas seguras e está disciplinada na Resolução nº 2.311 de 2022 do CFM e é definida como a modalidade de tratamento cirúrgico a ser utilizada por via minimamente invasiva, aberta ou combinada, para o tratamento de doenças em que já se tenha comprovado sua eficácia e segurança. Telemonitoramento ou Televigilância O telemonitoramento ou a televigilancia cresceu muito na pandemia, quando o distanciamento social era uma das formas de cuidado das pessoas para que não ocorresse a disseminação do vírus. Ele pode ocorrer por telefone, na situação em que o médico conversa com o paciente para verificar alguma alteração na sua saúde, como no uso de ferramentas que auxiliam o profissional para coleta e envio de dados em tempo real. Geralmente as funções que realizam são as de medir a glicose de pessoas com diabetes monitorar os batimentos cardíacos, aferir a pressão arterial e a temperatura corporal. O art. 10 da Resolução nº 2.314 dispõe que o telemonitoramento e a televigilância médica é o ato realizado sob coordenação, indicação, orientação e supervisão por médico para monitoramento ou vigilância a distância de parâmetros de saúde e/ou doença, por meio de avaliação clínica e/ou aquisição direta de imagens, sinais e dados de equipamentos e/ou dispositivos agregados ou implantáveis nos pacientes em domicílio, em clínica médica especializada em dependência química, em instituição de longa permanência de idosos, em regime de internação clínica ou domiciliar ou no translado de paciente até sua chegada ao estabelecimento de saúde. O seu uso deve ocorrer por indicação e justificativa do médico assistente do paciente e deve haver garantia de segurança e confidencialidade, tanto na transmissão quanto no recebimento de dados. A responsabilidade técnica da transmissão dos dados deve ser da instituição de vinculação do paciente. A interpretação dos dados e emissão de laudos deve ser feita por médico regularmente inscrito no CRM de sua jurisdição e com registro de qualificação de especialista (RQE) na área relacionada a exames especializados (§4º). Os dados devem ser adequadamente registrados no prontuário do paciente (§6º). A intermediação do atendimento pode ser feita por pessoas contratadas pelo serviço médico, que deverá promover o devido treinamento de recursos humanos. Teletriagem A teletriagem médica é uma modalidade remota de avaliação, encaminhamento e priorização de atendimentos aos pacientes. Com a teletriagem é possível dar efetividade na organização das unidades de saúde, direcionando os atendimentos com base naqueles que são prioritários, que precisam de encaminhamento ou que podem ser resolvidos de maneira não urgente. Este serviço também ganhou importância com a COVID19. A resolução mencionada dispõe que o médico deve destacar e registrar que se trata apenas de uma impressão diagnóstica e de gravidade, tendo autonomia da decisão de qual recurso será utilizado em benefício do paciente. Teleconsultoria Médica A teleconsultoria médica é uma consulta registrada e realizada entre trabalhadores, profissionais e gestores da área da saúde, com o intermédio das TDICs, com a finalidade de prestar esclarecimentos sobre procedimentos administrativos e ações de saúde (art. 12). Relatório, Atestado ou Prescrição médica Nos termos do art. 13 da Resolução 2.314, no caso de emissão à distância de relatório, atestado ou prescrição médica, deverá constar obrigatoriamente em prontuário: a) Identificação do médico, incluindo nome, CRM, endereço profissional; b) Identificação e dados do paciente (endereço e local informado do atendimento); c) Registro de data e hora; d) Assinatura com certificação digital do médico no padrão ICP-Brasil ou outro padrão legalmente aceito; e) que foi emitido em modalidade de telemedicina. Teleconferência Médica A teleconferência médica é uma ferramenta que é realizada uma videotransmissão síncrona, de procedimento médico para fins de assistência, educação, pesquisa e treinamento, com autorização do paciente ou seu responsável legal. O art. 14 da Resolução nº 2.314 de 2022 dispõe que o grupo de recepção de imagens, dados e áudios deve ser composto exclusivamente por médicos e/ou acadêmicos de medicina, todos devidamente identificados e acompanhados de seus tutores. No caso de eventos multiprofissionais há necessidade de observância da Resolução CFM nº 1.718 de 2004, que veda o médico de transmitir conhecimento, ensinar procedimentos privativos de médico a profissionais não-médicos.
Por Alan Martinez Kozyreff 18 ago., 2022
No Correio Brasiliense de 13/03/2020, Francisco Balaguer Callejón iniciou o seu artigo com uma frase bastante emblemática: Alguém, em algum lugar da China, remoto ao que nos possa parecer, compra um animal selvagem num mercado para seu consumo alimentar. Três meses depois, essa decisão provoca mais de 4 mil mortos e mais de 100 mil infectados por coronavírus[1]. No presente momento, em 31/01/2020, o mundo registra pouco mais de 52 mil mortes e mais de 1 milhão de pessoas infectadas, conforme dados extraídos da Universidade Johns Hopkins[2]. Para o enfrentamento desta pandemia o Brasil, tal como vários países do mundo, editaram diversas legislações para organizar a sociedade e dispor sobre as novas situações que estão surgindo. A principal lei, até o presente momento, é de número 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Desta lei derivou uma série de novas normas editadas pelos entes diversos da federação e que vão desde Medidas Provisórias até resoluções, de modo que o arcabouço jurídico está sendo construído conforme necessidades e fatos novos são apresentados aos gestores. As ferramentas que o poder público poderá implementar são aquelas dispostas no art. 3º da referida lei: isolamento; quarentena; determinação compulsória de exames; testes vacinas etc.; estudo ou investigação epidemiológica; exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; restrição excepcional e temporária de rodovias, portos ou aeroportos; requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas; e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa. O isolamento e a quarentena estão regulamentados pela Portaria nº 356 de 2020 e esta expõe que objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local (art. 3º). Esta medida somente poderá ser determinada por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, por um prazo máximo de 14 dias, podendo se estender por até igual período, conforme resultado laboratorial que comprove o risco de transmissão (§1º). A quarentena deve ser decretada com o objetivo de garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado. A medida de quarentena deve ser determinada mediante ato administrativo motivado, devendo ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde com publicação no Diário Oficial, tendo prazo de até 40 dias, podendo se estender pelo tempo necessário para reduzir a transmissão comunitária e garantir a manutenção dos serviços de saúde no território (§1º e §2º do art. 4º). O não cumprimento do isolamento ou da quarentena pode acarretar a aplicação de medidas que visem à responsabilização do infrator (art. 5º). Note-se que a restrição de pessoas é medida excepcional sendo necessária, pois o exercício de um direito individual pode expor a sociedade a um risco maior (saúde pública). Portanto, o Estado está autorizado a trazer certa limitação ao direito individual, desde que a medida seja justificada e razoável. Importante destacar que o §2º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020 dispõe que as pessoas afetadas pelas medidas mencionadas possuem o direito de informação sobre o seu estado de saúde e a assistência à família, de receberem tratamento gratuito e pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas. No entanto, em caso de descumprimento das medidas impostas, a pessoa poderá ser chamada à responsabilização pelos danos causados. O art. 7º da referida lei destaca que as medidas de restrição podem ser impostas pelos diversos entes da Federação, sendo o Ministério da Saúde ou gestores locais de saúde. No entanto, em caso de atividades essenciais é vedada a restrição à circulação de trabalhadores, bem como as cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população. As atividades essenciais foram regulamentadas pelos Decretos nº 10.282/20 e 10.292/20 e são, dentre outras: assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares; assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade; segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de presos; transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo; serviços funerários; compensação bancária; redes de cartões de crédito e débito; caixas bancários eletrônicos e outros serviços não presenciais de instituições financeiras; mercado de capitais e seguros; cuidados com animais em cativeiro; atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde; e unidades lotéricas. Pela urgência para a aquisição de bens e serviços a referida lei dispensa a licitação, mas é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (§1º do art. 4º). Algumas medidas mostram-se desafiadoras, mas podem render interessantes avanços como as ações de telemedicina, dispostas na Portaria nº 467 de 2020, onde autorizam os profissionais médicos para a interação à distância, contemplando o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, por meio de tecnologia da informação e comunicação, no âmbito do SUS e na saúde suplementar e privada. Ademais, é autorizada a emissão de receitas e atestados médicos à distância e será válida em meio eletrônico, mediante o cumprimento de determinadas normas dispostas no art. 6º da referida Portaria. O recrutamento de estudantes da área da saúde também foi regulamentado pela Portaria nº 356 de 2020, sendo autorizados os alunos dos dois últimos anos do curso de medicina e do último ano dos cursos de enfermagem, farmácia e fisioterapia do sistema federal de ensino, a possibilidade de realizar o estágio curricular obrigatório em unidades básicas de saúde, unidades de pronto atendimento, rede hospitalar e comunidades (art. 1º). Para os alunos de medicina a atuação deve ocorrer exclusivamente nas áreas de clínica médica, pediatria e saúde coletiva no apoio às famílias e aos grupos de risco, de acordo com as especificidades do curso. Quanto aos estudantes dos cursos de fisioterapia, enfermagem e farmácia, os alunos atuarão em áreas compatíveis com os estágios e as práticas específicas de cada curso. Como pode ser visto, no enfretamento de uma pandemia a produção legislativa deve ser contínua de forma a dar legitimidade para a atuação dos gestores e fazer com que o planejamento da ação consiga ser a mais efetiva possível. Os profissionais do Direito devem estar atentos às diversas medidas, auxiliando a interpretação das normas e denunciando caso qualquer irregularidade possa ser cometida. [1]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/03/13/internas_opiniao,833946/artigo-o-fracasso-da-narrativa-desprovida-de-solidariedade.shtml [2] https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6
Por Alan Martinez Kozyreff 18 ago., 2022
Dentre os debates mais acalorados que existem no mundo, certamente um dos mais presentes, é sobre a viabilidade ou não da utilização do princípio ativo cloroquina e hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas à azitromicina (antibiótico). Não se pretende neste texto um debate acerca da sua adoção no tratamento ou mesmo o debate sobre os estudos que comprovariam, ou não, a sua efetividade para pacientes portadores de COVID-19. A intenção é trazer a atual visão do Conselho Federal de Medicina (CFM), que foi exposta em 16/04/2020, por meio da Consulta CFM nº 8/2020 Parecer CFM nº 4/2020. O CFM é uma autarquia, com atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica. A entidade possui atribuições de realizar o registro profissional do médico e a aplicação de sanções previstas no Código de Ética Médica e possui funções que atuam em prol da saúde da população e dos interesses da classe médica. A referida autarquia tem sede em Brasília e jurisdição em todo o território nacional, conforme a Lei nº 3.268/57, de 30.9.57, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19.7.58, a Lei n° 11.000, de 15.12.04 e o Decreto n° 6.821, de 14.4.09, possui personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira. No parecer do CFM é reforçada a estratégia de prevenção da infecção pela não exposição de contato ao vírus e, neste sentido, é a recomendação básica de higienização frequente das mãos, evitar tocar os olhos, o nariz e a boca com as mãos não limpas, evitar o contato próximo com as pessoas e cobrir a boca e o nariz com o antebraço ao tossir ou espirrar. Faz também parte da prevenção o isolamento social, o que neste momento, do ponto de vista médico, a única medida eficaz para impedir a disseminação rápida do vírus e uma forma de se evitar a sobrecarga do sistema de saúde. Também se faz necessária a busca por atendimento médico imediatamente quando houver febre, tosse e dificuldade de respirar. Em período de isolamento, menos pessoas são contaminadas e haveria tempo para que possa haver a adequação das unidades de saúde, treinamento de equipes e ampliação da infraestrutura. O CFM deixa claro que o isolamento social não é medida que se possa durar por muito tempo, em razão de fatores de estabilização financeira e da saúde mental dos cidadãos. Também e uma forma de prevenção da transmissão a necessidade de reconhecimento precoce de novos casos, o que deve ocorrer com a realização de testes, pois os casos não detectados e assintomáticos são os maiores responsáveis pela elevada taxa de transmissão. Quanto à terapia farmacológica, o texto reafirma que “não existem evidências robustas de alta qualidade que possibilitem a indicação de uma terapia farmacológica específica”, porém desde 2019 vários medicamentos vêm sendo testados e os resultados são veiculados frequentemente. No entanto até o momento nenhum dos princípios ativos foram aprovados em ensaios clínicos, com desenho cientificamente adequado e dessa forma não podem ser recomendados com segurança. No parecer é trazido ainda que em recente pesquisa sobre o tratamento para conter a epidemia de infecção pelo vírus ebola, muitos medicamentos que demonstraram efeito em estudos de laboratório não foram eficazes ou foram prejudiciais aos pacientes quando passaram para utilização clínica. Dessa forma, é comum a impossibilidade de determinar se um medicamento ainda não testado terá maior benefício ou maior prejuízo se não houver um grupo controle. E é nesse estágio que se encontram a cloroquina e a hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a antibióticos, que têm sido muito utilizados para o tratamento da COVID-19, “considerando suas ações anti-inflamatórias e contra outros agentes infecciosos, seu baixo custo e o perfil de efeitos colaterais ser bem conhecido”. No entanto, o texto expõe que até o momento não existem estudos clínicos de boa qualidade que comprovem sua eficácia em pacientes com COVID-19, mas é ressalvado que esta situação pode mudar rapidamente considerando as pesquisas que são feitas até o momento. A título de exemplo, a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, em 11 de abril, recomendou cloroquina e hidroxicloroquina, isoladamente ou associadas a azitromicina, em pacientes internados sob protocolos clínicos de pesquisa. A Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) alerto quanto à segurança da cloroquina e hidroxicloroquina, para os seguintes aspectos: Por serem princípios ativos utilizados há muito tempo o seu perfil de segurança é conhecido. A classe dos antimaláricos são considerados imunomoduladoras e não imunossupressoras; As reações adversas mais comuns são relacionadas ao trato gastrointestinal como desconforto abdominal, náuseas, vômitos e diarreia, porém também podem ocorrer toxicidade ocular, cardíaca, neurológica e cutânea; Pacientes portadores de psoríase, porfiria e etilismo podem ser mais suscetíveis a eventos adversos cutâneos, geralmente sem gravidade; Em casos raros, pode ocorrer hemólise em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase Expondo esses elementos, o CFM expôs que o uso em pacientes com sintomas leves, no início do quadro clínico, com confirmação de COVID-19, se dá a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente. No entanto, o médico é obrigado a relatar ao paciente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso desses princípios ativos para o tratamento da doença, explicando os possíveis efeitos colaterais, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso. A menção aos familiares se dá em razão que, em muitas ocasiões pode não ser possível ter a declaração de vontade do próprio paciente por limitações físicas ou legais. Tal documento deve ser o mais claro e detalhado possível, em linguagem fácil de ser entendida pelo paciente ou família, deixando-o livre para fazer sua opção. No mesmo sentido, deve ser no caso de pacientes com sintomas importantes, mas ainda sem necessidade de cuidados intensivos, com ou sem necessidade de internação. Em caso de pacientes críticos, que estão recebendo cuidados intensivos, incluindo ventilação mecânica, o uso deve ser considerado condolente, compassivo, pois seria “difícil imaginar que em pacientes com lesão pulmonar grave estabelecida, com resposta inflamatória sistêmica e outras insuficiências orgânicas, a cloroquina ou hidroxicloroquina possam ter um efeito clinicamente importante”. O CFM reforça que o princípio norteador do tratamento é o da autonomia do médico e a valorização da relação médico-paciente. Esta deve ser próxima com o objetivo de oferecer ao paciente o melhor tratamento médico disponível no momento. Também é exposto que, diante da situação excepcional apresentada e durante o período declarado da pandemia, o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina não cometerá infração ética, desde que esteja nos termos acima expostos. Ao final do texto, é reforçado ainda que as considerações expostas são um retrato do momento, mas que podem ser modificadas a qualquer tempo pelo CFM com base em novos resultados das pesquisas que forem divulgados na literatura.
Por Alan Martinez Kozyreff 18 ago., 2022
O tema do momento é, sem dúvida, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A Lei nº 13.709/2018, sancionada em 14/08/2020 pelo Presidente Michel Temer, tem sua vigência bastante debatida atualmente pois está na dependência da sanção do atual Presidente da República. De fato trata-se de uma lei bastante importante, pois permite que o cidadão tenha controle sobre suas informações, como serão utilizadas e armazenadas por pessoas físicas, empresas, organizações e governo, ou seja, garante a chamada autodeterminação informacional. Atualmente vivemos em uma Sociedade da Informação embasada em tecnologias de informação e comunicação que envolvem aquisição, armazenamento, processamento e distribuição da informação por meios eletrônicos. A informação pessoal, neste contexto, é encarada como uma verdadeira commodity e desponta como modelo de negócio, com a intenção de extrair valor monetário deste fluxo informacional de dados. Dessa forma, o conhecimento e a informação são vitais para esta sociedade e sua utilização mostra-se potencializada pelo uso da internet (COSENZA et. MOURA, 2019). Diante desse contexto, a Lei nº 13.709/2018 surge como forma de trazer proteção para os dados pessoais e define a forma com que são colhidos e armazenadas por pessoas físicas ou pessoas jurídicas, nos ambientes on-line ou off-line. Os dados pessoais possuem uma enorme relevância e muitas empresas utilizam deste tráfego de informações para produzir novos produtos, oferecer serviços e produtos que tenha interesse ou até mesmo comercializar com outras empresas. Na área da saúde, especialmente no Direito Médico, o tema da segurança das informações é bastante relevante, uma vez que na atuação profissional existe uma reunião de dados de pacientes como diagnósticos, anamnese, laudos, prescrições médicas, exames etc. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais visa a criação de um ambiente de segurança das informações individuais para coibir um mercado de dados pessoais para fins comerciais onde não há autorização da pessoa. Isso fica bastante claro já pelo art. 1º da lei, pois a regulamentação da proteção dos dados engloba tanto pessoas naturais (pessoas físicas) quanto jurídicas (de direito público ou direito privado) e dessa forma, no campo do Direito Médico, sua abrangência se dá tanto a profissionais autônomos quanto hospitais, clínicas etc. Uma diretriz básica da legislação é que os dados somente poderão ser recolhidos e mantidos em caso de autorização da pessoa e deve haver, por parte daquele que irá coletar o dado, aviso explícito que o dado está sendo coletado e qual será a circunstância do seu uso. O usuário/paciente ainda poderá revogar a qualquer momento esse consentimento e então ter acesso aos seus dados para fins de alterações, atualizações, correções e supressões nos termos do art. 18 da lei. O titular também tem o direito de ser informado em caso de falha na proteção de seus dados. Além disso, há necessidade de criptografia para proteger as mensagens trocadas entre médicos e pacientes. A legislação ainda concede proteção maior aos chamados dados sensíveis, sendo estes os expostos no inciso II do art. 5º da LGPD: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. Para estes dados, há possibilidade do tratamento ocorrer sem o consentimento do titular, mas isso se dará em casos específicos como no caso de procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária, garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular. Destaca-se que é vedada a prática de compartilhamento de dados com o objetivo de obtenção de vantagem econômica, conforme o § 4º do art. 11. A exceção é para os casos de prestação de serviços de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, desde que observada a restrição dos planos de saúde em praticar seleção de riscos para contratação, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia, em benefício dos interesses dos titulares de dados, e para permitir a portabilidade de dados quando solicitada pelo titular ou as transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação dos serviços. No caso do fornecimento de dados, os estabelecimentos de saúde somente devem pedir os dados relevantes para o serviço a ser prestado, e o paciente terá o direito de saber a finalidade podendo questionar sobre a relevância da informação. Com relação aos dados sobre saúde, é certo que os médicos e os serviços de saúde já possuem a diretriz do cuidado com as informações dos pacientes, pois este tem o direito à privacidade, ao sigilo e inviolabilidade de suas informações pessoais, bem como, o histórico clínico, prontuário, tratamentos realizados, medicação etc. A proteção do sigilo referente aos dados e ao prontuário do paciente, já é prevista pelo Código de Ética Médica (Resolução nº 2.217 de 27 de setembro de 2018) e pela Lei nº 13.787/2018, que regula a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o manuseio de prontuário de paciente. Na LGPD tais informações integram a categoria dos dados sensíveis. De todo o caso, as regras expostas na LGPD aplicam-se a situações como no acesso a exames via plataformas digitais, na telemedicina e ainda na Troca de Informações na Saúde Suplementar – TISS (padrão obrigatório para as trocas eletrônicas de dados de atenção à saúde dos beneficiários de planos, entre os agentes da Saúde Suplementar)[1]. A legislação impõe que a pessoa natural ou a jurídica no caso da saúde, ou seja, o médico ou a empresa médica, indique uma pessoa (física ou jurídica) que terá a incumbência de efetuar a proteção dos dados no sistema (do inglês, Data Protection Officer – DPO), podendo haver a gestão por meio de terceirização de serviços. Destaca-se ainda que esses dados também serão disponibilizados no sistema da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), órgão federal que terá a incumbência de editar, elaborar normas e fiscalizar procedimentos relacionados à gestão e à proteção dos dados de usuários. As empresas e os profissionais que não se adequarem poderão ser passíveis de punições e é por este motivo que a busca por adoção destes protocolos é necessária. No caso de comprovação de infração, a penalidade poderá ser de advertências ou aplicação de multa equivalente a 2% sobre o faturamento bruto total no seu último exercício, desde que respeitado o limite máximo de R$ 50 milhões por infração (art. 52 da Lei). Pode ocorrer ainda a suspensão total ou parcial das operações que envolvam o tratamento de dados, e haver a responsabilização em âmbito judicial por outros tipos de violações à lei. As punições previstas serão aplicadas pela ANPD, mas este órgão ainda não está em atividade, no entanto, a responsabilidade civil do controlador ou do operador já ocorre no âmbito patrimonial, moral, individual ou coletivo em caso de dano. Diante da importância dos dados, bem como do risco de imposição de sanções, há necessidade de adaptação desta nova realidade e, portanto, realização das adequações como, por exemplo, nomeação do protetor de dados, obter fluxo de documentos e procedimentos, treinamento de equipes, ações educativas, revisão periódica de protocolos, estabelecimento de políticas de segurança, e outras. Tais protocolos também farão com que o profissional ou a empresa possam transmitir maior credibilidade para os usuários, pois terão segurança que os seus dados pessoais estarão protegidos. [1] http://www.ans.gov.br/prestadores/tiss-troca-de-informacao-de-saude-suplementar
Por Alan Martinez Kozyreff 18 ago., 2022
Uma recente decisão do TST trouxe à baila a discussão sobre a extensão da responsabilidade civil do empregador em casos onde ele não possui o controle da atividade desempenhada. No processo nº TST-RR-11025-31.2017.5.08.0110 houve a reforma do acórdão do TRT da 8ª Região para reconhecer a responsabilidade pelo dano moral aos pais, em razão da morte do empregado, motorista de caminhão, decorrente de assalto. Pelo relatório constante dos autos, o ex-empregado foi vítima de uma tentativa de assalto quando retornava para a empresa, após as entregas feitas no município de Novo Repartimento/PA, tendo sido alvejado por disparo de arma de fogo e vindo a óbito. No julgamento pelo Tribunal Regional, o Colegiado decidiu pela ausência de responsabilidade do empregador, pois o evento ocorrera em via pública fora das dependências da empresa. Nestas situações, conforme o julgamento realizado pelo 2º Grau de Jurisdição, não seria possível exigir do empregador o dever de prevenção, tendo em vista o fato ter sido praticado por terceiros. No TST, entretanto, a decisão foi reformada para a condenar do empregador ao pagamento de R$ 80.000,00 a título de danos morais aos autores, pais do ex-empregado. Os Ministros consideraram que o empregador deveria indenizar os autores, pois a atividade de motorista de carga possui um risco qualificado, ou seja, distinto do risco que se expõe a média dos empregados. Neste sentido, a responsabilidade do empregador teria natureza objetiva, nos termos do parágrafo único do art. 927 do Código Civil e, neste caso, não seria observada a culpa da empresa, mas somente a atividade laborativa e o dano causado. Havendo o nexo causal, corolário lógico estará presente o dever de indenização. No julgamento foram apresentadas diversas decisões que indicam o atual posicionamento do TST em considerar o exercício da atividade de motorista profissional, transportador de mercadorias, como sendo de risco e, assim, a ocorrência de um ato como assalto seria objeto de indenização por danos materiais e morais. Em razão do grande aumento da violência no país nota-se um aumento dessas situações e também de decisões desta natureza, ou seja, quando o empregado é vítima de um crime no desempenho de sua atividade laborativa e o empregador é condenado a compensar financeiramente o dano moral e indenizar o dano material causado ao trabalhador exposto a tal situação. No entanto, tais casos devem ser analisados com cautela. Obviamente que dependerá da análise do caso concreto, mas, em princípio, transferir ao empregador a responsabilidade por morarmos em um país extremamente violento, com pífios investimentos em segurança, sem interesse político para sanar esta situação, não parece estar correto. Não se exclui nesta análise e não se duvida do dano moral que o empregado tenha sofrido, pois somente quem já viveu a experiência de um assalto sabe dizer quão traumática é ! Todavia, fazer com quê o empregador seja o responsável pelo pagamento de valores altíssimos é algo que realmente salta aos olhos. Também não se olvida que a empresa deve sim ser responsabilizada quando é negligente, quando não possuir cuidados básicos com a segurança dos seus empregados e não cumprir com o seu dever de oferecer ao trabalhador uma condição de trabalho digna. No entanto, se nem mesmo a polícia consegue deter todos os atos criminosos, como o empregador irá fazer com que o seu empregado tenha total segurança no desempenho de suas atividades? Quando o empregado está em via pública não se deve exigir do empregador uma responsabilidade e um dever de cuidado que não pode ser controlado por ele. É distinta a situação se o empregador concede transporte ao empregado para se deslocar ao local de trabalho e o veículo se envolve em um acidente por falta de manutenção, por exemplo. Dessa forma, não se pode exigir do empregador responsabilidade que não é sua e, em casos como esses, o que vemos é que as empresas são punidas por exercerem atividade econômica, ou seja, são punidas por ser aventurarem em empreender em nosso país. Logo, claro está que o Estado não cumpre com o seu papel de garantia da segurança pública e, ao mesmo tempo, pune a empresa por não dar segurança ao seu empregado. Em arremete, talvez o primeiro passo seja, diante de tais condenações, o ajuizamento de ações regressivas em face do Estado, pois se a empresa foi punida pela falta de segurança pública, que então ele seja chamada a ressarcir os danos causados por uma obrigação que não cumpriu.
Por Alan Martinez Kozyreff 18 ago., 2022
Em época de crise econômica, é bastante comum que os direitos dos trabalhadores sejam tidos como os grandes entraves para o crescimento do emprego e da renda. Fecham-se os olhos para a incapacidade de escoamento da produção, da violência urbana e da grande carga tributária. A retórica é: o trabalhador deve abrir mão do seu direito e pronto, simples sim, dizem eles. No Brasil, um vilão que surge nesta linha de raciocínio é o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o chamado FGTS, e a indenização paga pelos empregadores quando da demissão imotivada do trabalhador. Esse fundo é formado por depósitos mensais feitos pelo empregador em uma conta vinculado ao empregado, com valor de 8% sobre o salário do empregado. Ocorre que poucas pessoas sabem, ou se lembram, de como e por que esse direito trabalhista foi criado. A CLT, em 1943, previu na redação original, o regime conhecido como estabilidade decenal e, conforme o art. 492 do texto consolidado, o trabalhador que alcançasse 10 anos de serviço na mesma empresa não poderia ser despedido senão por motivo de falta grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas. Naquele regime anterior, a rescisão do contrato de emprego somente ocorria após a instauração de uma ação judicial, o Inquérito para Apuração de Falta Grave. Nos termos do art. 853 da CLT, o empregador apresentava a ação dentro de 30 (trinta) dias, contados da data da suspensão do empregado. Ocorrendo a rescisão do contrato antes dos 10 anos de trabalho, o empregado teria direito a uma indenização equivalente a 1 mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a 6 (seis) meses, conforme art. 478 da CLT. O primeiro ano de trabalho era considerado como período de experiência e a demissão em tal período não concedia ao empregado qualquer indenização (§1º do art. 478 da CLT). Em crítica a esse regime, os empregadores argumentavam que a estabilidade dos empregados fazia com que a produtividade fosse baixa, especialmente quando alcançavam os 10 anos de contrato, e que um sistema que viabilizasse a rescisão a qualquer momento traria até mesmo uma melhora na economia, pois não havia necessidade de pagamento de valores tão altos ao empregado, quando do encerramento do vínculo. Além disso, aliviava a necessidade de o empregador ter que recorrer ao Poder Judiciário para que houvesse a demissão do trabalhador estável. O sistema apresentado para então substituir a estabilidade decenal foi o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado durante o regime militar pela Lei nº 5.107 de 13 de setembro 1966, pelo então presidente da República, o marechal Castelo Branco. Por esse novo regime o empregador se realizava um depósito mensal de 8% sobre a remuneração do empregado numa conta vinculada, que poderia ser acessada pelo empregado em caso de demissão sem justa causa. O acesso à conta poderia também ocorrer em demais situações previstas pela lei, tais como, aposentadoria, morte, doença grave ou para construção ou aquisição de um imóvel. Os depósitos do FGTS também abrangiam empregados com um ano ou menos de contrato, o que não ocorria com o regime anterior, pois antes desse período, eram dispensados sem qualquer valor de indenização. Esta alteração ocorreu dentre várias outras reformas institucionais e de um desejo de um ajuste econômico, elaborado por Octávio Gouvêa de Bulhões no Ministério da Fazenda e Roberto Campos à frente do Planejamento, titulares das pastas após o golpe de 64. Dentre essas alterações, houve ainda a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), o primeiro responsável pela administração dos recursos do Fundo de Garantia. Por este movimento o governo deixava claro que tinha grande interesse no acesso ao depósito que seria feito pelos empresários, pois o montante arrecadado seria utilizado para um auxílio à questão habitacional, fomentando ainda o sistema bancário no país. O regime do FGTS nasceu de forma optativa, ou seja, o empregado teria que realizar sua opção caso pretendesse esta nova forma de regulação do contrato. No entanto, o que ocorreu na prática foi que todos os empregados admitidos após a lei, eram compelidos obrigados a “optar” pelo regime do FGTS, quando da assinatura do contrato. Muitos trabalhadores entenderam que foram prejudicados com este novo regime, pois o depósito anual do FGTS correspondia a 96% do salário (8% x 12), não correspondendo a 100% dos que recebiam por ano de serviço no regime anterior (art. 478 da CLT). No entanto, esta matéria foi objeto de Súmula do TST: Súmula nº 98 do TST: A equivalência entre os regimes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e da estabilidade da Consolidação das Leis do Trabalho é meramente jurídica e não econômica, sendo indevidos quaisquer valores a título de reposição de diferença. Entre o período de 1967 até 1988 os dois regimes conviveram de forma paralela, tornando-se obrigatório o FGTS após a Constituição de 1988, ou seja, a estabilidade decenal só fora mantida para os trabalhadores que não fizeram a transição ao regime do FGTS. Em 1990, a Lei nº 8.036/90 trouxe a regulamentação atual do FGTS. Na gestão dos valores em conta vinculada, a Caixa Econômica Federal assumiu este controle desde 11/05/91, tendo o Conselho Curador do FGTS o poder de determinar as diretrizes e os programas gerais para o sistema. Do valor depositado, ocorre correção monetária de 3% mais a Taxa Referencial (TR), sendo este mais um ponto de crítica do regime, pois quando o governo utiliza o valor para financiamento imobiliário a correção e os juros são maiores do que o montante que ele remunera o FGTS do trabalhador. Na regulamentação inicial do FGTS, pela Lei nº 5.107/66, a indenização em caso de ruptura do contrato sem justa causa era de 10% dos valores depositados no período trabalhado na empresa e o pagamento deveria ocorrer no dia da demissão. Nos casos de culpa recíproca e força maior, a indenização se reduziria à metade, isto é, 5%. O texto constitucional de 1988 previu no inciso I do art. 7º ser um direito fundamental do empregado o recebimento de indenização compensatória para proteção contra a despedida arbitrária, devendo esta ser regulamentada por lei complementar. Como não havia lei complementar para efetivar este direito, o legislador constitucional então aumentou a referida indenização sobre os depósitos do FGTS para 40%, por meio do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), inciso I do art. 10. A indenização de 40% também foi prevista em 1990 na Lei nº 8.036 (§1º do art. 18) e esta determinava que o empregador pagasse diretamente ao empregado este montante quando da demissão. Em 1997 alterou-se a redação para que a indenização fosse depositada na conta vinculada do trabalhador. Para a professora Vólia Bomfim Cassar o FGTS tem natureza múltipla ou híbrida, pois para o “empregado ele tem natureza jurídica de direito à contribuição que tem caráter salarial (salário diferido). Equipara-se a uma poupança forçada. Para o empregador é uma obrigação e para a sociedade a contribuição tem caráter social”[1]. A evolução histórica descrita acima demonstra que o regime do FGTS já foi uma alteração importante e prejudicial no regime jurídico dos trabalhadores. Sob o argumento de aumento da produtividade das empresas e da criação de novas vagas de emprego, os trabalhadores deixaram de ter direito ao seu bem mais precioso, a estabilidade, para que a rescisão do contrato então ocorresse de forma livre e desimpedida. Agora, o que presenciamos é mais uma vez, sob os mesmos argumentos, forte movimento para cessação da indenização pela ruptura do contrato do vínculo de emprego. Os depósitos mensais só não sofrem ataques diretos, pois o governo necessita desse montante para o financiamento imobiliário. Caso isso não ocorresse, seria mais uma proposta de extinção de direitos. De todo o exposto, importante estabelecer o raciocínio sobre como chegamos aqui para que o passado possa ser um argumento de resistência para o futuro. [1] CASSAR, V.B. Direito do Trabalho. Gen/Editora Método, 11ª ed. Rio de Janeiro, 2015.
Por Alan Martinez Kozyreff 18 ago., 2022
Recentemente foi veiculado que os servidores do Poder Judiciário do Estado de São Paulo realizariam greve sanitária ou greve ambiental para demonstrar a discordância da categoria no retorno das atividades presenciais. Tal notícia[1] causou bastante curiosidade em razão de não ser um movimento comum e merece uma análise profunda sobre o tema. A greve é um instrumento constitucionalmente assegurado para que os trabalhadores possam utilizar pressão máxima junto ao empregador, com o intuito que os conflitos sejam resolvidos pela autocomposição. Dessa forma, a paralisação conjunta do trabalho pelos empregados visa constranger o empregador, objetivando que este ceda às reivindicações ou para que o empregador possa retornar à negociação. O direito de greve é previsto pela Carta Magna, no art. 9º, e compõe o rol dos direitos fundamentais, estando regulamentado pela Lei nº 7.783/89, sendo estendido aos servidores públicos nos julgamentos dos Mandados de Injunção nº 670, 708 e 712 pelo Supremo Tribunal Federal. Como regra, a greve está relacionada a direitos pleiteados pela categoria profissional e refutadas pela categoria econômica, ou pelo empregador, quando da negociação de novo instrumento coletivo (Convenção Coletiva de Trabalho ou Acordo Coletivo de Trabalho). Importante destacar que ocorre abuso do direito de greve quando a paralisação se dá após a celebração do acordo coletivo, convenção coletiva ou decisão da Justiça do Trabalho (no caso de sentença normativa), conforme disposto no art. 14 da Lei 7.783/89. Assim, após a realização do instrumento coletivo, somente não será considerado abuso do direito de greve quando o seu objetivo for o de exigir o cumprimento de cláusula coletiva pelo empregador ou se motivada pela superveniência de fatos novos ou acontecimento imprevisto que modifique substancialmente a relação de trabalho (parágrafo único do art. 14 da Lei nº 7.783/89). Esta última hipótese é o autorizativo legal para a chamada “greve ambiental”. Destaca-se que no termo “meio ambiente” há a abrangência do meio ambiente do trabalho, considerando que o próprio texto constitucional assim o trata quando dispõe que é obrigação do Sistema Único de Saúde “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” (inciso VIII do art. 200). O meio ambiente de trabalho sadio e seguro é um direito que se depreende também do texto constitucional nos termos do art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. É também um direito fundamental do trabalhador, nos termos do inciso XXII do art. 7º da Constituição Federal, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. O ambiente do trabalho normalmente é vinculado ao meio ambiente artificial, pois tais locais recebem a modificação do homem com construções, máquinas, ferramentas etc. O meio ambiente do trabalho, portanto, é compreendido como o “lugar onde o trabalhador exerce a sua profissão ou desenvolve o seu trabalho”[2] e sua proteção, portanto, ocorre desde o clima e passa até mesmo para as questões de segurança do trabalho, ergonomia, salubridade do trabalho. Um meio ambiente sadio também está ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, um dos fundamentos da República brasileira (inciso III do art. 1º da CRFB/88). A regulamentação constitucional trouxe a possibilidade do estudo da greve ambiental, pois os trabalhadores podem exigem a observância de preceitos de saúde, higiene ou segurança do trabalho[3]. Quando o texto constitucional se refere ao dever da coletividade em defender a preservação do meio ambiente, e nele inclui o meio ambiente laboral, fica claro que o empregador tem como obrigação a manutenção de um local sadio para sua atividade econômica. A ponderação entre a livre iniciativa e a valorização do trabalho, trazida pelo art. 170 do texto constitucional, reflete esta característica também no meio ambiente, pois a Emenda Constitucional nº 43/2003 incluiu, como princípio da ordem econômica, a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. A garantia a um meio ambiente saudável e digno impacta de forma importante na promoção da saúde do trabalhador, sendo este um direito declarado no art. 25 da Declaração dos Direitos Humanos. Esta proteção também está na CLT quando dispõe que a fiscalização do trabalho poderá até mesmo interditar atividade, estabelecimento, setor de serviço ou embargar obra quando demonstrada grave e iminente risco para o trabalhador (art. 161). No caso de interdição ou embargo, em razão do trabalho não ocorrer por culpa do empregador, nos termos da NR 3 item 3.5.5, “os trabalhadores receberão os salários como se estivessem em efetivo exercício”. Por esta regulamentação pode ser entendido que no caso da greve por melhores condições ambientais, ou risco iminente ao trabalhador, sendo este um dever do empregador, o contrato de trabalho estaria interrompido, e não suspenso. Ou seja, seria assegurado o direito ao salário pelos dias parados. Por este instrumento de pressão dos trabalhadores, independentemente da fiscalização do trabalho, os próprios trabalhadores podem agir para reivindicação de um meio ambiente laboral sadio para que possam prestar os serviços de forma segura. A greve ambiental é, portanto, um instrumento legítimo que pode ser utilizado quando presente grave ou iminente risco à saúde do trabalhador ocasionado por um meio ambiente danoso[4]. Raimundo Simão de Melo expõe que a greve ambiental é visada pelos trabalhadores para assegurar ambientes de trabalho seguros e saudáveis, sendo este um direito fundamental na categoria dos direitos humanos, como consagra a Constituição Federal do Brasil nos artigos 7º, inciso XXII e 225[5]. Também define a greve ambiental como a “paralisação coletiva ou individual, temporária, parcial ou total da prestação do trabalho a um tomador, qualquer que seja a relação de trabalho, com a finalidade de preservar e defender o meio ambiente do trabalhador”[6]. Não se notam muitos casos de apreciação desta matéria pelos tribunais, mas no julgamento do processo RO-1001747-35.2013.5.02.0000, no Tribunal Superior do Trabalho, a Ministra Kátia Magalhães Arruda expôs que se trata de um conceito ainda pouco conhecido e se define como uma paralisação que visa implementar condições de trabalho adequadas e seguras. Para a Ministra, os requisitos de validade da greve ambiental devem ser considerados dois tipos de situação: “os riscos comuns, em que os trabalhadores reivindicam melhores condições de trabalho; e os riscos incomuns, graves e iminentes, em que o risco para a saúde, integridade física e para a vida do trabalhador é imediato – e somente no segundo caso poderiam ser dispensados os requisitos da Lei 7.783/89”[7]. O Ministro Maurício Godinho Delgado, na relatoria do processo nº RO: 803994020165070000, expôs que no caso sub judice “inclui-se a circunstância de o movimento paredista ter sido deflagrado em razão do descumprimento de obrigações relacionadas à saúde, higiene e segurança no trabalho e à qualidade do meio ambiente do trabalho que importem em riscos graves e iminentes à incolumidade física e psíquica dos empregados. Trata-se da greve ambiental, cuja legalidade está condicionada à existência de riscos graves e iminentes, entendidos como aqueles que podem causar, caso não eliminados, danos à incolumidade física e psíquica dos trabalhadores”[8]. No entanto, a reivindicação realizada pelo movimento paredista deve ser unicamente o risco à saúde do empregado pelo meio ambiente de trabalho deve ser comprovada. No julgamento do processo RO 101787720155030000, a Ministra Relatora Dora Maria da Costa entendeu que o movimento grevista foi abusivo, pois o sindicato apresentava como justificativa do seu pleito o fato dos motoristas realizarem a pernoite no caminhão, mas também incluía reivindicações referentes ao plano de saúde[9]. Deve-se atentar que a greve ambiental se submete aos requisitos da Lei nº 7.783/89, tais como a negociação anterior ou a tentativa de negociação junto ao empregador, além da convocação de assembleia geral. Entretanto, em caso de risco iminente, bastaria para sua configuração uma constatação por perito habilitado ou laudo emitido pela fiscalização do Poder Público. Não há dúvida que a saúde do trabalhador é impactada por situações distantes daquelas que ele possui na sua vida laboral, mas a empresa, considerando o seu dever constitucional e legal, deve garantir ao trabalhador a dignidade de exercer suas atividades em ambiente seguro e sadio, podendo este reagir por meio da greve para que possa pleitear a sua proteção. [1] https://www.conjur.com.br/2020-jul-24/retomada-servidores-tj-sp-anunciam-greve-sanitaria [2] MENEZES, Kathe Regina Altafim. O meio ambiente do trabalho como direito fundamental. In: ALVARENGA, Rúbia Zanotelli (Coord). Direito constitucional do trabalho. São Paulo: LTr, 2015. cap. 12, p. 179-184. [3] SCHYRA, O. Repercussão Constitucional da Natureza Jurídica da Greve. 30 anos da Constituição Brasileira de 1988 e seu diálogo com a Justiça do Trabalho. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 64, n. 98, p. 277-303, jul./dez. 2018 [4] FÉLIX, Marcel Carlos Lopes. Greve ambiental: direito fundamental dos trabalhadores. Interdisciplinar: Revista Eletrônica da Univar nº. 6 p. 140 – 146, 2011. [5]https://www.conjur.com.br/2018-mar-02/reflexoes-trabalhistas-greve-ambiental-pagamento-dias-parados. [6] MELO, Raimundo Simão. A Greve do Direito Brasileiro. LTR, 2006, p. 98. [7] http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/tst-declara-abusiva-paralisacao-nao-caracterizada-como-greve-ambiental/pop_up?_101_INSTANCE_89Dk_viewMode=print&_101_INSTANCE_89Dk_languageId=pt_BR [8] TST – RO: 803994020165070000, Relator: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 09/12/2019, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 13/12/2019. [9] TST – RO: 101787720155030000, Relator: Dora Maria da Costa, Data de Julgamento: 14/12/2015, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015.
Mais Posts
Share by: